O CONGRESSO DA UNE EM IBIÚNA
por Nelson Piletti
Meados de outubro de 1968. Apesar de proibida de funcionar pela ditadura militar, que mandara incendiar sua sede no Rio de Janeiro, logo após o golpe de 1º. de abril de 1964, a União Nacional dos Estudantes(UNE) realiza o XXX Congresso num sítio do Bairro dos Alves, a uns vinte quilômetros do centro de Ibiúna pela estrada de São Sebastião.
O local é de difícil acesso. Juntamente com dois colegas, representando os universitários de Caxias do Sul, cheguei em São Paulo na manhã de terça-feira, viajei para o encontro marcado numa praça de Sorocaba, voltei para São Paulo, instalando-me num alojamento da USP, onde fiquei até a noite de quarta-feira, participando de reuniões e manifestações contra a ditadura, sob a constante ameaça da polícia e do exército, que depois acaba acontecendo.
Na noite de quarta-feira, assim como nas noites anteriores, carros particulares conduziam estudantes até uma certa altura da Rodovia Raposo Tavares.
De lá, na carroceria de caminhões, fomos até o Bairro dos Alves, percorrendo a pé os últimos quilômetros até o sítio do Congresso, onde chegamos na quinta pela manhã.
As instalações eram extremamente precárias: um acampamento de lona para as assembléias, um galpão onde uns poucos podiam dormir em sistema de revezamento – a maioria dormia no local das assembléias onde não se podia entrar sem tirar os calçados, já que chovia muito, o barro era abundante e o chão também havia sido revestido com lona – um chiqueirão desativado que servia de cozinha.
E lá estávamos cerca de mil estudantes de todo o Brasil – algumas delegações, duas ou três, nem conseguiram chegar – sem a mínima infra-estrutura de alimentação, alojamento, higiene.
No sábado, finalmente, após um difícil e prolongado processo de credenciamento, o Congresso teria início. Mas, quando acordamos, por volta das sete horas, vimo-nos cercados por mais de 250 policiais fortemente armados, dando tiros para o alto.
Todos presos, cada um procurando seus calçados num enorme monte – a maioria vestindo o que dava certo nos pés – colocados em fila indiana, marchamos até os ônibus e caminhões da polícia na estrada de São Sebastião, formando um comboio que nos levaria até o presídio Tiradentes no centro de São Paulo, que posteriormente foi demolido.
Em cada centro populacional – Ibiúna, Vargem Grande, Cotia – os veículos circulavam pelo centro para que a população visse os “facínoras” subversivos aprisionados no que foi considerada uma grande vitória do governo militar.
No presídio Tiradentes, onde chegamos por volta das sete da tarde, fiquei instalado numa cela de aproximadamente 3×6 metros com mais de 66 colegas. Num canto, uma torneira e um buraco no chão para as necessidades.
Para comer a gororoba servida num grande panelão, muitos usavam a carteirinha de estudante, outros o cabo da escova de dentes, previamente aquecido e amassado, outros, ainda, simplesmente as mãos.
Após uma semana de interrogatórios, a maioria dos estudantes foram levados presos para seus Estados, algumas delegações foram liberadas em São Paulo mesmo e cerca de 70, considerados os líderes, permaneceram presos.
Entre esses estava José Dirceu, então presidente da União Estadual dos Estudantes(UEE) de São Paulo e organizador do Congresso que, posteriormente seria banido do Brasil em troca da libertação do embaixador dos EUA, seqüestrado com o objetivo de obter a soltura de presos políticos. Hoje, muitos participantes do Congresso de Ibiúna ocupam posições de destaque na política, na economia, na cultura do país. Vinte anos depois, em 1988, eu próprio fui candidato a prefeito de Ibiúna.
O que significa, entre outras coisas, que o mundo gira, a história é dinâmica. Com o tempo as posições podem se inverter. Nas palavras de Harold Pinter, Nobel de Literatura de 2005, “nada é absolutamente falso nem absolutamente verdadeiro”.
Só para citar um de nossos maiores escritores, Guimarães Rosa, “natureza da gente não cabe em nenhuma certeza. (…) Esta vida está cheia de ocultos caminhos”.
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Originalmente publicado no jornal A VOZ DE IBIÚNA
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Vi no Na Trincheira