sábado, 22 de outubro de 2011

O que os historiadores fazem nos arquivos

Foi mais ou menos assim que descobri. Estava no último ano da faculdade e nunca tinha entrado em um arquivo. A culpa era da distância – estava em Santa Maria e os principais arquivos em Porto Alegre – , do curso – que nunca tinha me obrigado a entrar em um – e, obviamente, minha. Eu tinha passado dois anos lendo sobre um determinado assunto, no qual pretendia buscar uma especialização. Então, quando achei que já tinha lido o suficiente (e que meu tempo se esgotara com a formatura chegando) conduzi-me muito certa de mim até a capital do estado em busca das fontes que justificariam toda a minha leitura. O resultado foi – como se pode imaginar – desastroso. Minhas ideias eram tão distantes quanto possível das fontes existentes.

Imagino que se algum colega ler isso irá se identificar, talvez com uma parte, talvez com quase tudo. De qualquer forma, acredito que um leigo não tenha muito interesse ou apenas imagine o que os historiadores fazem com arquivos. Talvez, pergunte-se o que há com essa gente que idolatra papel velho e reclama quando alguém faz o que normalmente se faz com esse tipo de coisa, isto é, joga fora. Afinal, para que servem os arquivos e o que os historiadores fazem com eles? Sim, sim – concordam a maioria das pessoas – eles guardam a memória, logo, basta que se guarde o que é importante. O problema em busca de solução é justamente esse: o que é importante e quem determina o que é importante? Então, nos deparamos com um jogo de forças contrárias. De um lado, temos a limitação do espaço físico, de outro, a diversidade da compreensão do que é a memória de um povo a ser guardada. Num terceiro pólo, ficam os (diminutos) recursos destinados a isso ou que são desviados para outras coisas; e, num quarto vértice, ficam os arquivistas e os historiadores (que também têm suas diferenças, mas lutam juntos para que se preserve o máximo possível).

Não sei se esta é a melhor maneira, mas vou usar minha história com arquivo para ilustrar o que quero dizer. Pois então, estava eu, às vésperas da formatura, bastante empolgada em seguir uma pós-graduação, e sem nenhuma ideia do que elaborar como projeto de pesquisa (porta de entrada em qualquer pós-graduação na área de História). Após os lamentos de praxe pelos anos e ideias perdidos, meu mais fiel colega de trabalho (e de vida) e eu rumamos para o Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. A pobre arquivista que nos recebeu foi abalroada pela “profunda” questão: o que vocês guardam aqui? Intuitiva, a moça percebeu todo o desespero ali contido e nos enviou ao Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, nos confiando aos cuidados do historiógrafo do local. Encontramos a luz? Com certeza. Ela veio em forma de uma caixa com correspondências da polícia de Santa Maria entre os anos de 1858 e 1889.

Vasculhei papel por papel. A informação era mínima, mas estava lá. Eu podia saber quais os tipos de pessoas que eram presas, e quem era perigoso o suficiente para ser enviado para a capital da província. A repetição de sobrenomes de origem portuguesa ao lado da profissão de lavrador abriu espaço para que começássemos a repensar algumas coisas sobre a nossa região. Por exemplo, aquela história de que apenas os imigrantes italianos e alemães teriam sido responsáveis pela agricultura por aqui. Isso acabou rendendo o trabalho do meu colega. Eu, no entanto, fixei-me em um único documento. Uma nota na qual o subdelegado avisava ter prendido uma preta forra sexagenária por envenenamento.

É exatamente isso que nunca se fala ao aluno desta disciplina na escola (ou ao jovem que decide fazer um vestibular para cursar História no ensino superior) – não se diz que História, fazer História, é como um trabalho de detetive. Lá estava eu com uma única pista. Tinha um crime e um criminoso sem nome. Talvez, para muitas pessoas a quem aquele papel com uma ponta rasgada passasse pelas mãos, este não fosse um papel importante. Por que guardá-lo? Ele, afinal, seria fonte de quê? Diria o que a um hipotético pesquisador do futuro? Poderia sugerir algo a um romancista, quem sabe. Mas romancistas têm bastante imaginação. Por que justamente aquela caixa tinha de estar sob a guarda do poder público, ocupando espaço, beneficiando-se de ar condicionado, consumindo salários para guardá-la. O historiógrafo nos havia informado: ninguém jamais havia procurado por ela em todo o tempo que ele trabalhava ali.

No entanto, aquele papel transformou a estudante numa pesquisadora no instante em que eu o estranhei (foi aí que todas as leituras da faculdade me valeram). Afinal, não era incomum aos escravos vingarem-se do cativeiro por meio de envenenamento de seus senhores. Acontece que “minha criminosa” era uma liberta, já de avançada idade. Algo ali não se ajustava. Daquela vez, voltei à Santa Maria com muitas ideias, mas a mais forte era a de encontrar a mulher mencionada naquele papel.

Retornei à Porto Alegre pouco tempo depois e, desta vez, com um pouco mais de noção sobre os arquivos. Finalmente pudemos retornar até o Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul e, muito certos de nossas investigações, pedimos para olhar os Processos-crime de Santa Maria, datados do século XIX. Foi já no primeiro maço que encontrei o processo contra a curandeira preta forra sexagenária Maria Antônia. Ela era acusada de envenenar uma jovem acometida por uma doença que envolvia fortes ataques e expelir pela boca e nariz lã, agulhas, barro, linhas. Este processo e aquele primeiro obscuro pedaço de papel renderam minha dissertação de mestrado, na qual foi possível refletir sobre a diversidade de práticas de cura, a História de gênero e a escravidão no sul do Brasil. Minhas conclusões estão publicadas para quem quiser conferir e não pretendo repeti-las aqui.

Quero falar é de arquivos e da sua importância. Ou, se preferirem, falo da importância de gente desimportante, como as diversas Marias Antônias do passado e do presente que estão guardadas nos arquivos. Ao contrário do que ainda viceja no senso comum, a verdade é a que a História se faz tanto de Dom Pedros quanto de Marias Antonias. Penso, aliás, que é olhando para gente como essa minúscula e trágica preta forra que entendemos melhor nossos antepassados e seus legados. Não são os decretos coloniais, imperiais ou presidenciais que dizem quem somos. São as Marias Antonias e as vidas que tiveram, as formas como foram tratadas. A “minha” foi chamada para curar, fez seu trabalho o melhor possível e, por ser negra, mulher e ex-escrava ficou presa por cinco meses enquanto os homens, brancos e ciosos de seus diplomas, tentavam em vão por a perder sua reputação de curandeira.

Não pense que estou defendendo que as vidas das gentes simples sejam guardadas e preservadas no tempo, unicamente para que outros estudantes de História tenham assuntos para suas teses e dissertações (acredite, muita gente pensa isso sobre os arquivos históricos). Igualmente, não estou defendendo que absolutamente tudo seja preservado em nome da História, que também é feita de esquecimentos. Minha defesa é por políticas responsáveis de preservação, mas baseadas no trabalho de profissionais engajados com uma História mais coletiva do que institucional. Minha defesa destes arquivos ancora-se na firme convicção de que a História pertence às massas, às gentes que vivem anônimas, que fazem escolhas, que sofrem, agem e reagem aos grandes movimentos da História. É claro que, mesmo que nos desfaçamos dos documentos que falem dessas gentes, sua História ainda estará lá e ainda será a nossa. No entanto, porque impedir os historiadores do futuro compreenderem quem somos como multidão e como sujeitos do mundo social; de olharem mais de perto – mesmo que num minúsculo e esquecido pedaço de papel – esses anônimos, que somos em maioria.

Este texto é um apelo ao engajamento na preservação dos nossos arquivos.
E é, especialmente, dedicado aos arquivistas anônimos em seu dia
e aos vestibulandos anônimos pretendam escolher
a preservação da História como profissão, divertimento e vida.

* Nikelen Witter é historiadora, professora e escritora.
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Postado no Sul 21

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